“O cinema tem uma capacidade tão extraordinária de nos envolver, de nos mobilizar a atenção, a emoção, que é difícil se dar conta que estamos diante de uma escrita”[1]. A frase da cineasta Daniela Thomas ilumina a relação não explícita entre cinema e psicanálise. Uma vez pronunciada, torna quase óbvio aquilo que, de início, poderia ser considerado enigmático.
O cinema reflete e interroga as questões de seu tempo, que é também o nosso, é de discurso – portanto, de laço social - que se trata. A psicanálise, enquanto laço discursivo, não teria aí mesmo o seu papel ao incidir em um discurso constituído e, com isso, produzir um pequeno deslocamento, promovendo o quarto de giro que alterna lugares e funções?
Se é de discurso que se trata, estamos no campo da palavra e da linguagem - aquele que Lacan identificou como sendo o campo próprio da psicanálise –, submetidos às suas leis. Ou seja, trata-se do significante, de um sujeito representado em queda e do objeto que causa o desejo – e também angústia. São esses os elementos que permitem tomar cada filme aqui tratado como um texto – como Sigmund Freud fez com o sonho – uma escrita pictográfica, rébus.
Com precisão, Daniela Thomas destaca a dimensão de escrita presente no fazer cinematográfico; mutatis mutandi, ecoa Clarice Lispector, cuja literatura testemunha um infatigável trabalho de tessitura em torno do impossível colocado através e pela própria palavra:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler ‘distraidamente’.[2]
Assim, convidamos o leitor a ler ‘distraidamente’ esses breves ensaios, eles mesmos uma leitura ‘distraída’ de dezessete longa-metragens de diferentes nacionalidades e temas, cuja seleção não obedeceu a nenhum cânone, tampouco a qualquer critério pré-estabelecido. O único critério adotado – se é que se trata de um critério – foi o de que esses filmes permitiram pescar a não palavra em torno da qual o enredo se estrutura como rede significante. O vazio que ela contorna é a matéria-prima que nos permite bem-dizer alguma coisa, e calar outras tantas.
[1] THOMAS. D. O Globo, Ano 4 nº 214, 31 de agosto de 2008.
[2] LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.385.