Duas ou três coisas sobre O segredo de seus olhos
(...) disse
que a guerra servia, como a mulher,
para pôr à prova os homens e que, antes de
entrar na batalha, ninguém sabia quem é.
(Jorge Luis Borges)
“Temo”, rascunha em um pedaço de papel o homem subitamente despertado por sonhos intranqüilos na calada da noite. Sujeito oculto pelo verbo que declina em primeira pessoa um temor tão desconhecido quanto perturbadoramente familiar.
De volta à sua Buenos Aires natal o investigador penal Benjamín Espósito decide escrever sobre um crime ocorrido vinte e cinco anos antes. Uma jovem mulher fora brutalmente violentada e morta. Após a investigação por ele capitaneada, o assassino, condenado à prisão perpétua, ganhara a liberdade em troca da “colaboração” com a polícia política do governo peronista da época. Seu amigo Pablo Sandoval, também investigador, fora assassinado em seu lugar, aparentemente por engano. Benjamín Espósito refugiara-se no interior do país, deixando para trás Irene Hastings, jovem e brilhante advogada a quem jamais tivera a coragem de declarar o seu amor.
Transcorrido um quarto de século, Espósito decide retornar ao caso, agora como autor de um romance. Sem saber, é sua própria história que será escrita ao se reencontrar com a bela Irene - que nesse ínterim se tornara uma respeitável juíza -, com quem compartilha a ideia sobre o livro. Ainda que sem compreender o desmedido interesse de Benjamín pelo caso encerrado há tanto tempo, Irene o presenteia com uma antiga máquina de escrever. Nesta, a tecla que corresponde à letra a encontra-se, há anos, defeituosa: esta é a única letra que não pode ser impressa.
Acossado pelas lembranças, Benjamín Espósito pretende acertar as contas com o passado. Não o seu - com o qual se encontrará à sua revelia - mas com o crime deixado impune. O amor eterno e idealizado que atribui ao marido da jovem assassinada parece ter por função encobrir seu próprio recuo diante do desejo.
Durante vinte e cinco anos Espósito vivera obsedado por este crime, parasita de uma história que não lhe pertence – como lhe faz ver Ricardo Morales, o viúvo. Refém de seu afã por justiça este se impusera uma condenação perpétua, atrelada à do criminoso. Sua pena fora o silêncio mais corrosivo, degredo da palavra.
Irene, ao contrário, construíra uma vida para si – se casara, tivera filhos, consolidara sua carreira jurídica. Não ficara à espera de Benjamín, embora também o amasse. “Olhar para trás não é minha jurisdição”, ela lhe diz com a sabedoria prática que certas mulheres têm.
Dedicando-se à ficção, o investigador precocemente aposentado tropeça no real deparando-se com o ponto fixo em torno do qual sua vida, até então, girara - fixão. Ao evocar o momento de sua despedida de Irene na estação de trem tantos anos antes, Benjamín é por ela interpelado: “Por que você não me levou?”. Cego de razão, não percebera que não se tratava de (fazer) justiça, mas (de não ceder) do desejo.
Ao escrever a estória que supõe ser a de outro homem, Benjamín Espósito se encontra com a sua. Nela, há uma letra que falta, a, causa de desejo, que por não ter representação se escreve em perda. É esta letra que, introduzindo-se na enigmática palavra “temo”, retroativamente faz dela um lapso: “Te a mo”. a-diante! - ponto de fuga no qual o sujeito é aspirado -, desejo em ato. Um novo começo, aleph.
Benjamín finalmente vai ao encontro da mulher que ama. Desta vez, não para
resgatar o passado, mas para escrever o futuro. Irene ri
1 El secreto de sus ojos, filme de Juan José Campanella (Argentina/Espanha, 2009).
Juan José Campanella
Eduardo Sacheri e Juan José Campanella
Policial, Drama, Romance, Suspense
Argentina
129 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=dY-WjN5n2Pc
Cinema