Freud, Sigmund (1996vvv). O tema dos três escrínios. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1913).
A citação encontra-se em “O tema dos três escrínios” (1913), páginas 324 - 325. Trata sobre a peça Rei Lear a partir da leitura feita por Freud sobre a escolha entre três mulheres, a qual recai sempre sobre a terceira. Especificamente neste trecho, Freud fala de Rei Lear como a peça que mais se aproxima do tema mítico, pois Lear é constrangido pela morte, não havendo o revestimento do amor, como na outra peça shakespeariana tratada neste artigo, O mercador de Veneza, escolhe a Morte.
Para evitar más interpretações, gostaria de dizer que não é minha intenção negar que a história dramática do Rei Lear destina-se a inculcar duas sábias lições: a própria vida e que devemos guardar-nos de aceitar a lisonja pelo seu valor aparente. Estas advertências e outras semelhantes são indubitavelmente postas em relevo pela peça; mas me parece inteiramente impossível explicar o irresistível efeito de Rei Lear a partir da impressão que tal seqüência de pensamento produziria, ou supor que os motivos pessoais do dramaturgo não foram além da intenção de ensinar essas lições. Sugere-se, também, que seu intuito foi apresentar a tragédia da ingratidão, cujo aguilhão bem pode ter sentido no próprio coração, e que o efeito da peça repousa no elemento puramente formal de sua apresentação artística; mas isto não pode, segundo me parece, tomar o lugar da compreensão que nos foi trazida pela explicação a que chegamos do tema da escolha entre as três irmãs.
Lear é um homem velho. É por esta razão, como já dissemos, que as três irmãs aparecem como filhas suas. O relacionamento de um pai com os filhos, que poderia ser uma fonte fecunda de muitas situações dramáticas, não recebe consideração ulterior na peça. Mas Lear não é apenas um homem velho: é um homem moribundo. Desta maneira, a extraordinária premissa da divisão de sua herança perde toda sua estranheza. Mas o homem condenado não está disposto a renunciar o amor das mulheres; insiste em ouvir quanto é amado. Permitam-nos agora recordar a comovente cena final, um dos pontos culminantes da tragédia no teatro moderno. Lear carrega o corpo morto de Cordélia para o palco. Cordélia é a Morte. Se invertermos a situação, ela se torna inteligível e familiar para nós. Ela é Deusa da Morte que, como as Valquírias na mitologia germânica, recolhe do campo de batalha o herói morto. A sabedoria eterna, vestida deste mito primevo, convida o velho a renunciar ao amor, escolher a morte e reconciliar-se com a necessidade de morrer.
O dramaturgo nos leva mais próximo do tema antigo, por representar o homem que faz a escolha entre as três irmãs como idoso e moribundo. A revisão regressiva que assim aplicou ao mito, deformada como foi pela transformação prenhe de desejo, permite-nos vislumbres suficientes de seu significado original para capacitar-nos a chegar também a uma interpretação alegórica superficial das três figuras femininas do tema. Poderíamos argumentar que o que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher – a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe. Mas é em vão que um velho anseia pelo amor de uma mulher, como o teve primeiro de sua mãe; só a terceira das Parcas, a silenciosa Deusa da Morte, tomá-lo-á nos braços (Freud, 1996vvv, 324 - 325).
Shakespeare, Rei Lear
08/11/2025 00:00