O mercador de Veneza - 6ª referência

Freud, Sigmund (1996o). Conferências introdutórias sobre psicanálise (partes I e II). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. XV (1996). (Obra original publicada em 1917).

A citação encontra-se em Conferências introdutórias sobre psicanálise (1917 [1916-17]), na Conferência II - Parapraxias, páginas 46-48. Nesse contexto, Freud discorre sobre o uso de lapsos (e outras parapraxias) pelo Dichter: tanto este quanto Freud parecem considerar que os lapsos possuem um sentido desconhecido.

Um exemplo ainda mais impressionante foi descoberto por Otto Rank [1910a] em Shakespeare. Está em O Mercador de Veneza, na famosa cena em que o venturoso amante escolhe entre os três cofres… e talvez o melhor é ler para os senhores a breve descrição de Rank:

“Um lapso de língua ocorre em O Mercador de Veneza, de Shakespeare (Ato III, Cena 2) e é, do ponto de vista dramático, causado de maneira extremamente sutil e empregado com técnica brilhante. Semelhante ao lapso existente em Wallenstein, para o qual Freud chamou a atenção, mostra que os dramaturgos possuem uma clara compreensão do mecanismo e do significado desse tipo de parapraxia, e supõem que o mesmo seja verdadeiro para sua platéia. Pórcia, que, por vontade de seu pai, teve de escolher um marido por sorteio, escapou, até então, de todos os seus indesejados pretendentes por um feliz acaso. Tendo enfim encontrado em Bassanio o pretendente de sua preferência, tem motivos para temer que também ele venha a escolher o cofre errado. Ela desejaria muito dizer-lhe que, mesmo assim, ele poderia ter certeza de seu amor; porém isso lhe é vedado em virtude do juramento. Nesse conflito íntimo, o poeta faz com que ela diga ao pretendente preferido:

Por favor, não vos apresseis; esperai um ou dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes mal, perco vossa companhia; assim, pois, aguardai um pouco. Alguma coisa me diz (mas não é o amor) que não quereria perder-vos… Eu poderia ensinar-vos como escolher bem; mas, então, seria perjura e não o serei jamais. Podeis, pois, fracassar; porém, se fracassardes, far-me-eis deplorar não haver cometido o pecado de perjúrio. Malditos sejam vossos olhos!

Encantaram-me e partiram-me em duas partes: uma é vossa e outra é meia vossa; quero dizer, minha; mas, sendo minha, é vossa e, desse modo, sou toda vossa.

A coisa da qual ela desejava dar a ele apenas um indício muito sutil, porque devia escondê-la dele de qualquer maneira, ou seja, que ela, mesmo antes de ele fazer a escolha, era inteiramente dele e o amava — é precisamente isso que o poeta, com uma maravilhosa sensibilidade psicológica, faz irromper abertamente em seu lapso de língua; e, com essa solução artística, logra aliviar tanto a incerteza intolerável do amante como o suspense do compreensivo auditório diante do resultado de sua escolha.’

Observem também com que habilidade Pórcia, no fim, reconcilia as duas afirmações contidas em seu lapso de língua, como resolve a contradição entre elas e como, finalmente, mostra ser o lapso o que estava correto:

“Mas, sendo minha, é vossa e desse modo, sou toda vossa” (Freud, 1996o, p. 46-48).

Shakespeare, O mercador de Veneza

08/11/2025 00:00