Freud, Sigmund (1996vvv). O tema dos três escrínios. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1913).
A citação encontra-se em “O tema dos três escrínios” (1913), páginas 313-314. Neste trecho Freud trata do enigma da escolha dos três cofrinhos dos pretendentes da personagem Pórcia da peça O mercador de Veneza (1605), de Shakespeare. Na peça, o pai falecido da personagem já citada lhe permite casar apenas com aquele que desvendasse o enigma de três cofres, um de ouro, outro de prata e outro de chumbo. Freud irá tratar de um tema que se repete na história da literatura ocidental da escolha de um homem por três mulheres, sendo sempre a última a escolhida. A associação feita com a peça O mercador de Veneza é explicada através da “linguagem dos sonhos”, na qual caixinhas e cofres representam o órgão genital feminino, sendo assim, os três cofrinhos representam três mulheres.
Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma tragédia, proporcionaram-me ultimamente ocasião para colocar e solucionar um pequeno problema. A primeira destas cenas é a escolha dos pretendentes entre os três escrínios, em Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma tragédia, proporcionaram-me ultimamente ocasião para colocar e solucionar um pequeno problema. A primeira destas cenas é a escolha dos pretendentes entre os três escrínios, em O mercador de Veneza. A bela e sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como marido apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre os três que se lhe acham à frente. Os três escrínios são de ouro, prata e chumbo: o certo é aquele que contém o retrato dela. Dois pretendentes já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, o terceiro, decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afeição já era sua antes do julgamento da fortuna. Cada um dos pretendentes dá os motivos para sua escolha num discurso em que louva o metal que prefere e deprecia os outros dois. A tarefa mais difícil compete assim ao afortunado terceiro pretendente; o que ele encontra para dizer em glorificação do chumbo, contra o ouro e a prata, é pouco e tem um cunho forçado. Se, na clínica psicanalítica, nos defrontássemos com tal discurso, suspeitaríamos que haveria motivos escondidos por trás das insatisfatórias razões apresentadas. Shakespeare não inventou este oráculo da escolha de um escrínio; tirou-o de uma história das Gesta Romanorum, no qual uma moça tem de fazer a mesma escolha para conquistar o filho do Imperador. Também aqui o terceiro metal, o chumbo, é o portador da fortuna. Não é difícil adivinhar que temos aqui um tema antigo, que exige ser interpretado, explicado à sua origem. Uma primeira conjectura quanto ao significado desta escolha entre ouro, prata e chumbo é rapidamente confirmada por uma afirmação de Stucken, que efetuou um estudo do mesmo material num amplo campo. Escreve ele: ‘A identidade dos três pretendentes de Portia fica clara por sua escolha: o Príncipe de Marrocos escolhe o escrínio de ouro – ele é o Sol; o Príncipe de Aragão escolhe o escrínio de prata – ele é a Lua; Bassanio escolhe o escrínio de chumbo – ele é o filho da estrela!’ Em apoio de sua explicação, cita um episódio da epopéia folclórica estoniana, ‘Kalewipoeg’, no qual os três pretendentes aparecem sem disfarce como os filhos do Sol, da Lua e estrelas (o último sendo ‘o filho mais velho da Estrela Polar’) e, mais uma vez, a noiva cabe ao terceiro. (...) na cena de O mercador de Veneza, o assunto é aparentemente o mesmo, mas, ao mesmo tempo, nele aparece algo com o caráter de uma inversão do tema: um homem escolhe entre três – escrínios. Se aquilo em que estamos interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios são também mulheres, símbolos do que é essencial na mulher, e portanto da própria mulher – como arcas, cofres, caixas, cestos etc. Se corajosamente presumirmos que há substituições simbólicas do mesmo tipo também nos mitos, então a cena do escrínio em O mercador de Veneza tornar-se realmente a inversão que suspeitamos. Com um aceno de varinha de condão, como se estivéssemos num conto de fadas, despojamos de nosso tema a indumentária astral e agora percebemos que ele é um tema humano, a escolha de um homem entre três mulheres” (Freud, 1996vvv, p. 313-314, grifos do original).. A bela e sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como marido apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre os três que se lhe acham à frente. Os três escrínios são de ouro, prata e chumbo: o certo é aquele que contém o retrato dela. Dois pretendentes já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, o terceiro, decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afeição já era sua antes do julgamento da fortuna. Cada um dos pretendentes dá os motivos para sua escolha num discurso em que louva o metal que prefere e deprecia os outros dois. A tarefa mais difícil compete assim ao afortunado terceiro pretendente; o que ele encontra para dizer em glorificação do chumbo, contra o ouro e a prata, é pouco e tem um cunho forçado. Se, na clínica psicanalítica, nos defrontássemos com tal discurso, suspeitaríamos que haveria motivos escondidos por trás das insatisfatórias razões apresentadas. Shakespeare não inventou este oráculo da escolha de um escrínio; tirou-o de uma história das Gesta Romanorum, no qual uma moça tem de fazer a mesma escolha para conquistar o filho do Imperador. Também aqui o terceiro metal, o chumbo, é o portador da fortuna. Não é difícil adivinhar que temos aqui um tema antigo, que exige ser interpretado, explicado à sua origem. Uma primeira conjectura quanto ao significado desta escolha entre ouro, prata e chumbo é rapidamente confirmada por uma afirmação de Stucken, que efetuou um estudo do mesmo material num amplo campo. Escreve ele: ‘A identidade dos três pretendentes de Portia fica clara por sua escolha: o Príncipe de Marrocos escolhe o escrínio de ouro – ele é o Sol; o Príncipe de Aragão escolhe o escrínio de prata – ele é a Lua; Bassanio escolhe o escrínio de chumbo – ele é o filho da estrela!’ Em apoio de sua explicação, cita um episódio da epopéia folclórica estoniana, ‘Kalewipoeg’, no qual os três pretendentes aparecem sem disfarce como os filhos do Sol, da Lua e estrelas (o último sendo ‘o filho mais velho da Estrela Polar’) e, mais uma vez, a noiva cabe ao terceiro. (...) na cena de O mercador de Veneza, o assunto é aparentemente o mesmo, mas, ao mesmo tempo, nele aparece algo com o caráter de uma inversão do tema: um homem escolhe entre três – escrínios. Se aquilo em que estamos interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios são também mulheres, símbolos do que é essencial na mulher, e portanto da própria mulher – como arcas, cofres, caixas, cestos etc. Se corajosamente presumirmos que há substituições simbólicas do mesmo tipo também nos mitos, então a cena do escrínio em O mercador de Veneza tornar-se realmente a inversão que suspeitamos. Com um aceno de varinha de condão, como se estivéssemos num conto de fadas, despojamos de nosso tema a indumentária astral e agora percebemos que ele é um tema humano, a escolha de um homem entre três mulheres” (Freud, 1996vvv, p. 313-314, grifos do original).
Shakespeare, O mercador de Veneza
08/11/2025 00:00