Macbeth - 7ª referência

Freud, Sigmund (1996n). Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1916).

A citação encontra-se em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), no item II - “Os arruinados pelo êxito”, páginas 333-339. Nesta longa passagem, Freud estuda o processo pelo qual as pessoas sucumbem ao atingir o êxito. Para isso, cita Lady Macbeth, como uma personagem que, segundo ele, ilustraria essa questão.

Podemos tomar como exemplo de pessoa que sucumbe ao atingir o êxito, após lutar exclusivamente por ele com todas as suas forças, a figura de Lady Macbeth, criada por Shakespeare. De início, não há qualquer hesitação, qualquer sinal de conflito interno nela, qualquer esforço senão o de vencer os escrúpulos de seu ambicioso, embora compassivo, marido. Ela se mostra pronta a sacrificar até mesmo sua feminilidade à sua intenção assassina, sem refletir no papel decisivo que esta feminilidade deverá desempenhar quando, posteriormente, surgir a questão de preservar a finalidade de sua ambição, alcançada através de um crime.

Vinde, espíritos sinistros Que servis aos desígnios assassinos! Dessexuai-me, enchei-me, da cabeça Aos pés, da mais horrível crueldade!
(Ato I, Cena 5.)

…Bem conheço As delícias de amar um tenro filho Que se amamenta: embora! eu lhe arrancara Às gengivas sem dente, ainda quando Vendo-o sorrir-se para mim, o bico De meu seio, e faria sem piedade Saltaram-lhe os miolos, se tivesse Jurado assim fazer, como juraste Cumprir esta empreitada.
(Ato I, Cena 7.)

Apenas um leve e isolado frêmito de relutância dela se apossa antes do feito: …Se no seu sono não lembrasse tanto Meu pai, tê-lo-ia eu mesma apunhalado!
(Ato II, Cena 2.)

Então, quando se torna Rainha pelo assassinato de Duncan, ela trai por um momento algo como um desapontamento, algo como uma desilusão.

Não podemos dizer por que razão. …Tudo perdemos quando o que queríamos, Obtemos sem nenhum contentamento: Mais vale ser a vítima destruída Do que, por a destruir, destruir com ela O gosto de viver.
(Ato III, Cena 2.)

Não obstante, ela se mantém firme. Na cena do banquete que se segue a essas palavras, somente ela se conserva serena, encobre o estado de confusão do marido e encontra um pretexto para dispensar os convivas. E então desaparece de vista. A seguir, vêmo-la na casa de sonambulismo do último Ato, fixada nas impressões da noite do assassinato. Mais uma vez, como antes, procura incutir coragem ao marido:

Por quem sois, meu senhor, que vergonha! Um soldado com medo? Por que havemos de recear que alguém o saiba, se ninguém nos pode pedir contas?
(Ato V, Cena 1.)

Ela ouve a pancada na porta, que apavorou o marido depois do feito. Mas ao mesmo tempo luta por ‘desfazer a ação que não pode ser desfeita’. Lava as mãos, manchadas de sangue e que cheiram a sangue, e fica cônscia da futilidade da tentativa. Ela que parecia tão sem remorsos, parece ter sido abatida pelo remorso. Quando morre, Macbeth, que nesse meio tempo se tornou tão inexorável quanto ela no começo, encontra apenas um breve epitáfio para ela: É morta… Não devia ser agora. Sempre seria tempo para ouvir-se Essas palavras.
(Ato V, Cena 5.)

E agora nos perguntamos: o que foi que quebrantou esse caráter que parecia ter sido forjado do metal mais rijo? Terá sido somente a desilusão — o aspecto diferente revelado pelo fato consumado —, e devemos inferir que, mesmo em Lady Macbeth, uma natureza originalmente dócil e feminina foi levada a um ponto de concentração e de alta tensão que não pôde suportar por muito tempo, ou devemos procurar indícios de uma motivação mais profunda, que tornará essa derrocada mais humanamente inteligível para nós?

Parece-me impossível chegar a uma decisão. Macbeth, de Shakespeare, é uma pièce d’occasion, escrita para a ascensão de Jaime, até então Rei da Escócia. O enredo foi feito de encomenda e já fora trabalhado por outros escritores contemporâneos, de cuja obra Shakespeare provavelmente se utilizou, como costumava fazer. Apresentava notáveis analogias com a situação real. A ‘virginal’ Elisabeth, de quem se dizia que jamais fora capaz de ter filhos e que certa vez se descrevera a si própria como um ‘tronco estéril’, numa angustiosa exclamação pela notícia do nascimento de Jaime, foi obrigada por essa mesma esterilidade a fazer do rei escocês seu sucessor. E ele era o filho de Maria Stuart, cuja execução ela, embora relutantemente, ordenara, e que, apesar do toldamento de suas relações por causa de preocupações políticas, era não obstante do seu sangue e podia ser chamada de sua hóspede.

A ascensão de Jaime I foi como uma demonstração da maldição da esterilidade e das bênçãos da geração contínua. E a ação do Macbeth de Shakespeare baseia-se nesse mesmo contraste. As Bruxas asseguram a Macbeth que seria rei, mas a Banquo prometeram que seus filhos herdariam a coroa. Macbeth se enfurece com esse ditame do destino. Não fica contente com a satisfação de sua própria ambição. Deseja fundar uma dinastia — e não ter cometido assassinato em benefício de estranhos. Esse ponto será negligenciado se a peça de Shakespeare for considerada apenas como uma tragédia de ambição. É claro que Macbeth não pode viver para sempre, e assim existe apenas uma forma para que ele invalide a parte da profecia que lhe é desfavorável — a saber, ter ele mesmo filhos que possam sucedê-lo. E ele parece esperá-los de sua indomável esposa:

Não concebas nunca Senão filhos varões; tua alma indomável O pede assim.
(Ato I, Cena 7.)

E é igualmente claro que, se for desapontado nessa expectativa, deverá submeter-se ao destino; do contrário, suas ações perdem toda finalidade e são transformadas na fúria cega de alguém condenado à destruição, que está resolvido a destruir de antemão tudo o que pode alcançar. Vemos Macbeth passar por esse processo, e no clímax da tragédia ouvimos o grito lancinante de Macduff que com tanta freqüência é considerado ambíguo e que talvez possa conter a chave da mudança em Macbeth:

Ele não tem filhos!
(Ato IV, Cena 3.)

Não há dúvida de que isso significa: “Somente porque ele próprio não tem filhos é que pôde assassinar meus filhos.” No entanto, algo mais pode estar implícito nisso e, acima de tudo, poderia pôr a nu o motivo mais profundo que não apenas força Macbeth a ir muito além de sua própria natureza, como também toca no único ponto fraco do caráter insensível de sua esposa. Se se examinar toda a peça, a partir do clímax assinalado pelas palavras de Macduff, ver-se-á que ela está repleta de referências à relação pai-filhos. O assassinato do bondoso Duncan não passa de parricídio; no caso de Banquo, Macbeth mata o pai, enquanto o filho se lhe escapa; e no de Macduff, ele mata os filhos porque o pai fugira dele. Uma criança ensangüentada e a seguir uma coroada lhe são mostradas pelas Bruxas na cena da aparição; a cabeça armada que é vista antes sem dúvida é o próprio Macbeth. Mas no segundo plano ergue-se a forma sinistra do vingador, Macduff, ele próprio uma exceção às leis da geração, visto que não nasceu de sua mãe mas foi arrancado de seu ventre.

Seria um exemplo perfeito de justiça poética à maneira de talião se a ausência de filhos de Macbeth e a infecundidade de sua Lady fossem o castigo pelos seus crimes contra a santidade da geração — se Macbeth não pudesse tornar-se pai porque roubara de um pai os filhos, e dos filhos um pai, e se Lady Macbeth sofresse o assexuamento que exigira dos espíritos do assassinato. Creio que a doença de Lady Macbeth, a transformação de sua impiedade em penitência, poderia ser explicada diretamente como uma reação à sua infecundidade, pela qual ela se convence de sua impotência contra os ditames da natureza, sendo ao mesmo tempo lembrada de que foi através de sua própria falta que seu crime foi roubado da melhor parte dos seus frutos.

Na Chronicle (1577), de Holinshed, da qual Shakespeare extraiu o argumento de Macbeth, Lady Macbeth é mencionada apenas uma vez como a esposa ambiciosa que instiga o marido ao assassinato para que ela possa tornar-se rainha. Não há menção a seu destino subseqüente nem ao desenvolvimento de seu caráter. Por outro lado, afigurar-se-ia que a transformação de Macbeth num tirano sanguinário é atribuída aos mesmos motivos que sugerimos aqui, pois em Holinshed decorrem dez anos entre o assassinato de Duncan, através do qual Macbeth se torna rei, e suas más ações ulteriores; e nesses dez anos ele é mostrado como um governante severo porém justo. Só depois desse lapso de tempo é que se inicia nele a mudança, sob a influência do medo atormentador de que a profecia a Banquo possa realizar-se, assim como aconteceu com a profecia de seu próprio destino. Só então é que ele engendra o assassinato de Banquo, e, como em Shakespeare, é impelido de um crime a outro. Não é expressamente mencionado em Holinshed que foi a ausência de filhos que o impeliu a esses caminhos, mas se dá bastante tempo e espaço para esse motivo plausível. Isso não ocorre em Shakespeare. Os eventos nos chegam de roldão na tragédia, com pressa ofegante, de modo que, a julgar pelas declarações de suas personagens, o curso de sua ação abrange cerca de uma semana. Essa aceleração retira a base de todas as nossas interpretações dos motivos da mudança no caráter de Macbeth e no de sua esposa. Não há tempo para que um longo desapontamento quanto às suas esperanças de nascimento de filhos faça a mulher sucumbir e leve o homem a uma fúria desafiadora, e permanece a contradição de que, apesar de tantas inter-relações sutis no enredo, e entre este e a sua ocasião, apontarem para uma origem comum no tema da infecundidade, a economia de tempo na tragédia, não obstante, impede expressamente um desenvolvimento de caráter oriundo de quaisquer motivos que não sejam aqueles inerentes à própria ação.

Quais, contudo, teriam sido os motivos que, num tão curto espaço de tempo, puderam transformar o homem hesitante e ambicioso num desabrido tirano, e sua instigadora de coração empedernido numa mulher doente corroída pelo remorso, é, na minha opinião, impossível adivinhar. Devemos, penso eu, abandonar toda e qualquer esperança de penetrar na tríplice camada de obscuridade em que se condensaram a má preservação do texto, a intenção desconhecida do dramaturgo e o propósito oculto da lenda. Mas eu não aprovaria a objeção de que investigações como estas são vãs, em face do poderoso efeito que a tragédia exerce sobre o espectador. O dramaturgo pode realmente, durante a representação, dominar-nos pela sua arte e paralisar nossos poderes de reflexão; mas não nos pode impedir de que, subsequentemente, tentemos aprender seu efeito mediante o estudo de seu mecanismo psicológico. Nem o argumento de que um dramaturgo tem a liberdade de encurtar à vontade a cronologia natural dos fatos que ele apresenta diante de nós, se pelo sacrifício da probabilidade comum ele puder realçar o efeito dramático, me parece pertinente nesse caso, pois tal sacrifício só se justifica quando meramente interfere na probabilidade, e não quando rompe a relação causal; além disso, o efeito dramático dificilmente teria sido afetado se se tivesse deixado a passagem do tempo indeterminada, em vez de ficar expressamente limitada a poucos dias.

Fica-se tão pouco inclinado a abandonar um problema como o de Macbeth por considerá-lo insolúvel, que me aventurarei a apresentar um novo ponto, que talvez ofereça outra saída para a dificuldade. Ludwig Jekels, num recente estudo shakesperiano, pensa ter descoberto uma técnica particular do poeta, e isso poderia aplicar-se a Macbeth. Ele crê que Shakespeare muitas vezes divide um tipo em duas personagens, as quais, tomadas isoladamente, não são inteiramente compreensíveis e somente vêm a sê-lo quando reunidas mais uma vez numa unidade. Macbeth e Lady Macbeth poderiam estar nesse caso. Ainda sendo, seria destituído de fundamento considerá-la como um tipo independente e procurar os motivos de sua modificação, sem considerar o Macbeth que a completa. Não seguirei mais essa pista; não obstante, gostaria de ressaltar algo que confirma esse ponto de vista de maneira impressionante: os germes do medo que irrompem em Macbeth na noite do assassinato já não se desenvolvem nele, mas nela. É ele quem tem a alucinação do punhal antes do crime; mas é ela quem depois adoece de uma perturbação mental. É ele que após o assassinato ouve o grito na casa: “Não durmas mais! Macbeth de fato trucida o sono…” e assim “Macbeth não mais dormirá”, contudo, mais! ouvimos dizer que ele dormiu mais, ao passo que a Rainha, como vemos, ergue-se de seu leito e, falando enquanto dorme, trai sua culpa. É ele que fica desamparado com as mãos cobertas de sangue, lamentando que ‘todo o grande oceano de Netuno’ não as limpará, enquanto ela o consola: “Um pouco de água nos limpa desta ação”; mas depois é ela que lava as mãos durante um quarto de hora e não consegue livrar-se das manchas de sangue: ‘Todas as essências da Arábia não purificarão esta mãozinha.’ Assim, o que ele temia em seus tormentos de consciência, se realiza nela; ela se torna toda remorso e ele, todo desafio. Juntos esgotam as possibilidades de reação ao crime, como duas partes desunidas de uma individualidade psíquica, sendo possível que ambos tenham sido copiados de um protótipo único.

Se fomos incapazes de responder por que Lady Macbeth sucumbiu após seu êxito, talvez tenhamos uma oportunidade melhor, passando à criação de outro grande dramaturgo, que muito parecia acompanhar, com inflexível rigor, problemas de responsabilidade psicológica (Freud, 1996n, p. 333-339).

Shakespeare, Macbeth

08/11/2025 00:00