Hamlet - 8ª referência

Freud, Sigmund (1996c). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. IV. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1900).

A citação encontra-se em “A interpretação dos sonhos” (1900) no capítulo V, intitulado “O material e as fontes dos sonhos”, seção (D) - “Sonhos típicos”. Trata-se de uma discussão sobre a forma em que as questões edipianas aparecem na peça Hamlet, que apresentaria as mesmas questões com relação ao desejo incestuoso e parricida que a peça trágica Édipo rei, no entanto, de forma recalcada.

Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e - tal como no caso de uma neurose - só ficamos cientes de sua existência através de suas conseqüências inibidoras. Estranhamente, o efeito esmagador produzido por essa tragédia mais moderna revelou-se compatível com o fato de as pessoas permanecerem em completa ignorância quanto ao caráter do herói. A peça se alicerça nas hesitações de Hamlet em cumprir a tarefa de vingança que lhe é atribuída; mas seu texto não oferece nenhuma razão ou motivo para essas hesitações, e uma imensa variedade de tentativas de interpretá-las falhou na obtenção de qualquer resultado. Segundo a visão que se originou em Goethe e é ainda hoje predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está “amarelecido, com a palidez do pensamento”.) Segundo outra visão, o dramaturgo tentou retratar um caráter patologicamente indeciso, que poderia ser classificado de neurastênico. O enredo do drama nos mostra, contudo, que Hamlet está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer atitude. Vemo-lo fazer isso em duas ocasiões: primeiro, num súbito rompante de cólera, quando trespassa com a espada o curioso que escuta a conversa por trás da tapeçaria, e em segundo lugar, de maneira premeditada e até ardilosa, quando, com toda a insensibilidade de um príncipe da Renascença, envia os dois cortesãos à morte que fora planejada para ele mesmo. O que é, então, que o impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai? A resposta, mais uma vez, está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa - salvo vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir. Aqui traduzi em termos conscientes o que se destinava a permanecer inconsciente na mente de Hamlet; e, se alguém se inclinar a chamá-lo de histérico, só poderei aceitar esse fato como algo que está implícito em minha interpretação. A aversão pela sexualidade expressa por Hamlet em sua conversa com Ofélia ajusta-se muito bem a isto: a mesma aversão que iria apossar-se da mente do poeta em escala cada vez maior durante os anos que se seguiram, e que alcançou sua expressão máxima em Timon de Atenas. Pois, naturalmente, só pode ser a própria mente do poeta que nos confronta em Hamlet. Observo num livro sobre Shakespeare, de Georg Brandes (1896), uma declaração de que Hamlet foi escrito logo após a morte do pai de Shakespeare (em 1601), isto é, sob o impacto imediato de sua perda e, como bem podemos presumir, enquanto seus sentimentos infantis sobre o pai tinham sido recentemente revividos. Sabe-se também que o próprio filho de Shakespeare, que morreu em tenra idade, trazia o nome de “Hamnet”, que é idêntico a “Hamlet”. Assim como Hamlet versa sobre a relação entre um filho e seus pais, Macbeth (escrito aproximadamente no mesmo período) aborda o tema da falta de filhos. Entretanto, assim como todos os sintomas neuróticos e, no que tange a esse aspecto, todos os sonhos são passíveis de ser “superinterpretados”, e na verdade precisam sê-lo, se pretendermos compreendê-los na íntegra, também todos os textos genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo único e mais de um único impulso na mente do poeta, e são passíveis de mais de uma interpretação. No que escrevi, tentei apenas interpretar a camada mais profunda dos impulsos anímicos do escritor criativo. [nota 1] (Freud, 1996c, p. 290-292).

Há uma nota de rodapé acrescentada em 1919:

Essas indicações de uma explicação psicanalítica de Hamlet foram desde então ampliadas por Enerst Jones e defendidas contra outros pontos de vista propostos na literatura sobre o assunto (Ver Jones, 1910a; e numa forma mais completa, 1949.) - |Acrescentado em 1930:| A propósito, nesse meio tempo, deixei de crer que o autor das obras de Shakespeare tinha sido o homem de Stratford. |Acrescentado em 1919:| Outras tentativas de uma análise de Macbeth serão encontradas num trabalho meu |Freud, 1916a| e num de Jekels (1917). - |A primeira parte desta nota de rodapé foi incluída de forma diferente na edição de 1911, mas omitida a partir de 1914: "Os pontos de vista sobre o problema de Hamlet contidos no trecho acima foram desde então confirmados e apoiados nos novos argumentos num extenso estudo do Dr. Ernest Jones, de Toronto (1910a). Ele também assinalou a relação entre o material de Hamlet e os mitos sobre o nascimento dos heróis, examinados por Rank (1909)" - Freud ainda examinou Hamlet num esboço publicado postumamente, que versa sobre "Personagens psicopáticos no palco" (1942a), escrito provavelmente em 1905 ou 1906 (Freud, 1996c, p. 290-292).

Shakespeare, Hamlet

08/11/2025 00:00