Complexo de Édipo - 6ª referência

Freud, Sigmund. (1996c). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. IV. (Obra original publicada em 1900).

A citação encontra-se em “A interpretação dos sonhos” (1900) no capítulo V, intitulado “O material e as fontes dos sonhos, seção (D) - Sonhos típicos, subseção Sonhos sobre a morte de pessoas queridas”, páginas 282-293. Nesta longa citação, Freud retoma aquilo que havia apontado em cunho pessoal e íntimo a Fliess agora não mais baseando-se em sua própria experiência (que ainda assim não está excluída disto), mas nos relatos clínicos e sonhos de seus pacientes, isto é, no material empírico de sua nova ciência, a psicanálise. A constatação que antes lhe era íntima do desejo parricida e incestuoso ganha novos contornos: é nela que Freud encontra fundamento teórico-conceitual para a hipótese de universalidade da trama edipiana. A comoção causada por Édipo a plateias que assistem à peça mais de 2 mil anos depois assim o faz porque o destino de cada um seria o mesmo de Édipo: todos seríamos Édipos na fantasia - e isto é posto a partir do que observa mediante o trabalho clínico com os sonhos.

Mas, se os desejos de morte de uma criança contra seus irmãos e irmãs são explicados pelo egoísmo infantil que a faz considerá-los seus rivais, como iremos explicar seus desejos de morte contra seus pais, que a cercam de amor e suprem suas necessidades, e cuja preservação esse mesmo egoísmo deveria levá-la a desejar? Uma solução para essa dificuldade é fornecida pela observação de que os sonhos com a morte de pais se aplicam com freqüência preponderante ao genitor do mesmo sexo do sonhador, isto é, que os homens sonham predominantemente com a morte do pai, e as mulheres, com a morte da mãe. Não posso afirmar que isso ocorra universalmente, mas a preponderância no sentido que indiquei é tão evidente que precisa ser explicada por um fator de importância geral [nota 1, página 283]. Dito sem rodeios, é como se uma preferência sexual se fizesse sentir numa tenra idade: como se os meninos olhassem o pai, e as meninas a mãe como seus rivais no amor, rivais cuja eliminação não poderia deixar de trazer-lhes vantagens. Antes que essa ideia seja rejeitada como monstruosa, é conveniente, também nesse caso, considerar as relações reais vigentes - desta vez, entre pais e filhos. Devemos distinguir entre o que os padrões culturais de devoção filial exigem dessa relação e o que a observação cotidiana mostra ser a realidade. Mais de uma causa de hostilidade se esconde na relação entre pais e filhos - uma relação que propicia as mais amplas oportunidades de surgimento de desejos que não podem passar pela censura. Consideremos, primeiramente, a relação entre pai e filho. A sacralidade que atribuímos aos mandamentos explicitados no Decálogo tem toldado, penso eu, nossa capacidade de perceber os atos reais. Mal parecemos ousar observar que a maior parte da humanidade desobedece o Quinto Mandamento. Tanto nas camadas mais baixas como nos retratos mais elevados da sociedade humana, a devoção filial tem o hábito de ceder a outros interesses. As obscuras informações que nos são trazidas pela mitologia e pelas lendas das eras primitivas da sociedade humana fornecem-nos uma imagem desagradável do poder despótico do pai e da crueldade com que ele o usava. Cronos devorou seus filhos, tal como o javali devora as crias da javalina, enquanto Zeus castrou o pai [nota 2, página 283], fazendo-se rei em seu lugar. Quanto mais irrestrita era a autoridade paterna na família antiga, mais precisava o filho, como seu sucessor predestinado, descobrir-se na posição de um inimigo, e mais impaciente devia ficar para tornar-se chefe, ele próprio, através da morte do pai. Mesmo em nossas famílias de classe média, os pais se inclinam, via de regra, a recusar a seus filhos a independência e os meios necessários para obtê-la, fomentando assim o crescimento do germe de hostilidade e que é inerente à sua relação. Um médico estará freqüentemente em condição de notar como a tristeza de um filho pela morte do pai não consegue suprimir sua satisfação por ter finalmente conquistado sua liberdade. Em nossa sociedade de hoje, os pais tendem a se agarrar desesperadamente ao que resta de uma potestas patris famílias agora tristemente antiquada; e o autor que, como Ibsen, destaca em seus escritos a luta memorial entre pais e filhos pode ter certeza de produzir um efeito. As causas de conflito entre filha e mãe surgem quando a filha começa a crescer e ansiar por liberdade sexual, mas se descobre sob a tutela da mãe, enquanto esta, por outro lado, é advertida pelo crescimento da filha de que é chegado o momento em que ela própria deve abandonar suas apropriações à satisfação sexual. Tudo isso fica patente aos olhos de todos. Mas não nos ajuda em nosso esforço de explicar os sonhos com a morte dos pais em pessoas cuja devoção a eles foi irrepreensivelmente estabelecida há muito tempo. As discussões precedentes, além disso, ter-nos-ão preparado para saber que o desejo de morte contra os pais remonta à primeira infância. Essa suposição confirmada, com uma certeza que não deixa margem a dúvidas, no caso dos psiconeuróticos, quando sujeitos à análise. Com eles aprendemos que os desejos sexuais de uma criança - se é que, em seu estágio embrionário, eles mereçam ser chamados assim - despertam muito cedo, e que o primeiro amor da menina é por seu pai, enquanto os primeiros desejos infantis do menino são pela mãe. Por conseguinte, o pai se transforma num rival perturbador para o menino, e a mãe, para a menina; e já demonstrei, no caso dos irmãos e irmãs, com que facilidade esses sentimentos podem levar a um desejo de morte. Também os pais dão mostras, em geral, da parcialidade sexual: uma predileção natural costuma fazer com que o homem tenda a mimar excessivamente suas filhinhas, enquanto sua mulher toma o partido dos filhos homens, muito embora os dois, quando seu julgamento não é perturbado pela magia do sexo, mantenham uma rigorosa fiscalização sobre a educação dos filhos. A criança está perfeitamente ciente dessa parcialidade e se volta contra aquele de seus pais que se opõe a demonstrá-la. Ser amada por um adulto não traz para a criança apenas a satisfação de uma necessidade especial; significa igualmente que ele conseguirá o que quiser também em todos os demais aspectos. Assim, ele estará seguindo sua própria pulsão sexual e, ao mesmo tempo, conferindo um novo vigor à inclinação demonstrada por seus pais, se sua escolha entre eles coincidir com a deles. Os sinais dessas preferências infantis, em sua maior parte, passam despercebidos; no entanto, alguns deles podem ser observados mesmo depois dos primeiros anos da infância. Uma menina de oito anos a quem conheço, quando sua mãe é chamada a se afastar da mesa, aproveita essa ocasião para proclamar-se sua sucessora: “Agora, eu vou ser a Mamãe. Você quer mais verduras, Karl? Então se sirva!” e assim por diante. Uma menina de quatro anos, particularmente dotada e esperta, em quem esse dado da psicologia infantil é especialmente visível, declarou com toda franqueza: Mamãe agora pode ir embora. Aí Papai vai ter que casar comigo e eu vou ser mulher dele.” O fato de tal desejo ocorrer numa criança não é absolutamente incompatível com o estar ternamente ligada à mãe. Um menino a quem se permite que durma ao lado da mãe enquanto o pai está fora de casa, mas que tem de voltar para o quarto das crianças e para alguma pessoa de quem gosta muito menos tão logo o pai retorna, pode facilmente começar a formar um desejo de que o pai esteja sempre ausente, de modo que ele próprio possa conservar seu lugar ao lado da querida e adorável Mamãezinha. Uma maneira óbvia de concretizar esse desejo seria se o pai estivesse morto, pois a criança aprendeu uma coisa com a experiência – a saber, que as pessoas “mortas”, como o Vovô, estão sempre ausentes e nunca mais voltam. Embora essas observações sobre crianças pequenas se ajustem perfeitamente à interpretação que propus, elas não transmitem uma convicção tão completa quanto a que é imposta ao médico pelas psicanálises de neuróticos adultos. No segundo caso, os sonhos do tipo que estamos considerando são introduzidos na análise num contexto tal que é impossível evitar interpretá-los como sonhos de realização de desejos. Certo dia, uma de minhas pacientes se achava num estado aflito e choroso. “Nunca mais quero rever meus parentes”, disse ela; “eles devem achar que sou horrível.” Prosseguiu então, quase sem transição alguma, dizendo que se lembrava de um sonho, embora, naturalmente, não tivesse nenhuma idéia do que ele significava. Quando tinha quatro anos, ela sonhara que um lince ou uma raposa estava andando no telhado; então alguma coisa caíra, ou ela havia caído; e depois, sua mãe fora levada para fora de casa, morta - e ela chorou amargamente. Eu lhe disse que esse sonho devia significar que, quando criança, ela teria desejado ver a mãe morta, e devia ser por causa do sonho que ela achava que seus parentes deviam julgá-la horrível. Mal acabei de dizer isso, ela forneceu um material que lançou luz sobre o sonho. “Olho de lince” era um xingamento que lhe fora dirigido por um moleque de rua quando ela era muito pequena. Quando tinha três anos de idade, uma telha caíra na cabeça de sua mãe, fazendo-a sangrar abundantemente. Tive certa vez a oportunidade de proceder a um estudo pormenorizado de uma jovem que passara por uma multiplicidade de condições psíquicas. Sua doença começou com um estado de excitação confusional durante o qual ela exibiu uma aversão toda especial pela mãe, batendo nela e tratando-a com grosseria toda vez que ela se aproximava de sua cama, ao passo que, nesse mesmo período, mostrava-se dócil e afetuosa para com uma irmã muitos anos mais velha que ela. Seguiu-se um estado em que ela ficou lúcida, mas um tanto apática e sofrendo de um sono muito agitado. Foi durante essa fase que comecei a tratá-la e a analisar seus sonhos. Um imenso número desses sonhos dizia respeito, com maior ou menor grau de disfarce, à morte da mãe: numa ocasião, ela comparecia ao enterro de uma velha; noutra, ela e a irmã estavam sentadas à mesa, trajadas de luto. Não havia nenhuma dúvida quanto ao sentido desses sonhos. À medida que seu estado foi melhorando ainda mais, surgiram fobias histéricas. A mais torturante delas era o medo de que algo pudesse ter acontecido à sua mãe. A moça era obrigada a correr para casa, de onde quer que estivesse, para se convencer de que a mãe ainda estava viva. Este caso, considerado em conjunto com o que eu havia aprendido de outras fontes, foi muito instrutivo: exibia, traduzidos, por assim dizer, em diferentes línguas, os vários modos pelos quais o aparelho psíquico reagiu a uma mesma representação excitante. No estado confusional, no qual, segundo creio, a segunda instância psíquica foi dominada pela primeira, que é normalmente suprimida, sua hostilidade inconsciente para com a mãe encontrou uma poderosa expressão motora. Quando se instalou o estado mais calmo, reprimida a rebelião e restabelecido o domínio da censura, a única região acessível em que sua hostilidade poderia realizar o desejo da morte da mãe era a região do sonho. Quando um estado normal se estabeleceu ainda mais firmemente, levou à confirmação de sua preocupação exagerada com a mãe, como uma contra-reação histérica e um fenômeno defensivo. Em vista disso, já não é difícil compreender por que as moças histéricas são tantas vezes apegadas a suas mães com um afeto tão exagerado. Numa outra ocasião, tive oportunidade de aceder a uma compreensão profunda da mente inconsciente de um rapaz cuja vida se tornara quase impossível em virtude de uma neurose obsessiva. Ele estava impossibilitado de sair à rua porque era torturado pelo medo de matar toda pessoa que encontrasse. Passava seus dias preparando um álibi para a eventualidade de ser acusado de um dos assassinatos cometidos na cidade. Desnecessário acrescentar que era um homem de moral e educação igualmente elevadas. A análise (que, aliás, o levou a recuperar-se) mostrou que a base dessa torturante obsessão era um impulso de assassinar seu pai extremamente severo. Esse impulso, para surpresa dele, fora conscientemente expressado quando ele tinha sete anos, mas se originara, é claro, numa fase muito anterior de sua infância. Após a penosa doença e a morte do pai, surgiram no paciente as auto-recriminações obsessivas - ele contava então 31 anos -, tomando a forma de uma fobia transferida para estranhos. Não se podia confiar, achava ele, em que uma pessoa capaz de querer empurrar o próprio pai para o precipício, do alto de uma montanha, fosse respeitar as vidas daqueles com quem tivesse uma relação menos estreita; ele tinha toda a razão de se fechar em seu quarto. Em minha experiência, que já é extensa, o papel principal na vida mental de todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos difiram acentuadamente, nesses aspectos, dos outros seres humanos que permanecem normais - isto é, que eles sejam capazes de criar algo absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável - e isto é confirmado por observações ocasionais de crianças normais -, que eles se diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada, sentimentos de amor e ódio pelos pais, os quais ocorrem de maneira a menos óbvia e intensa nas mentes da maioria das crianças. Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome. Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de Jocasta, foi enjeitado quando criança porque um oráculo advertira Laio de que a criança ainda por nascer seria o assassino de seu pai. A criança foi salva e cresceu como príncipe numa corte estrangeira, até que, em dúvida quanto a sua origem, também ele interrogou o oráculo e foi alertado para evitar sua cidade, já que estava predestinado a assassinar seu pai e receber sua mãe em casamento. Na estrada que o levava para longe do local que ele acreditara ser seu lar, encontrou-se com o Rei Laio e o matou numa súbita rixa. Em seguida dirigiu-se a Tebas e decifrou o enigma apresentado pela Esfinge que lhe barrava o caminho. Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram a mão de Jocasta em casamento. Ele reinou por muito tempo com paz e honra, e aquela que, sem que ele o soubesse, era sua mãe, deu-lhe dois filhos e duas filhas. Por fim, então, irrompeu uma peste e os tebanos mais uma vez consultaram o oráculo. É nesse ponto que se inicia a tragédia de Sófocles. Os mensageiros trazem de volta a resposta de que a peste cessará quando o assassino de Laio tiver sido expulso do país. Mas ele, onde está ele? Onde se há de ler agora O desbotado registro dessa culpa de outrora? A ação da peça não consiste em nada além do processo de revelação, com engenhosos adiamentos e sensação sempre crescente - um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise - de que o próprio Édipo é o assassino de Laio, mas também de que é o filho do homem assassinado e de Jocasta. Estarrecido ante o ato abominável que inadvertidamente perpetrara, Édipo cega a si próprio e abandona o lar. A predição do oráculo fora cumprida. Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do destino. Diz-se que seu efeito trágico reside no contraste entre a suprema vontade dos deuses e as vãs tentativas da humanidade de escapar ao mal que a ameaça. A lição que, segundo se afirma, o espectador profundamente comovido deve extrair da tragédia é a submissão à vontade divina e o reconhecimento de sua própria impotência. Os dramaturgos modernos, por conseguinte, tentaram alcançar um efeito trágico semelhante, tecendo o mesmo contraste num enredo inventado por eles mesmos. Mas os espectadores ficaram a contemplar, impassíveis, enquanto uma praga ou um vaticínio oracular se realizava apesar de todos os esforços de algum homem inocente: as tragédias do destino posteriores falharam em seu efeito. Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que podemos descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em die Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras modernas tragédias do destino. E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso - porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai. Nossos sonhos nos convencem de que é isso o que se verifica. O Rei Édipo, que assassinou Laio, seu pai, e se casou com Jocasta, sua mãe, simplesmente nos mostra a realização de nossos próprios desejos infantis. Contudo, mais afortunados que ele, entrementes conseguimos, na medida em que não nos tenhamos tornado psiconeuróticos, desprender nossos impulsos sexuais de nossas mães e esquecer nosso ciúme de nossos pais. Ali está alguém em quem esses desejos primevos de nossa infância foram realizados, e dele recuamos com toda a força do recalcamento pelo qual esses desejos, desde aquela época, foram contidos dentro de nós. Enquanto traz à luz, à medida que desvenda o passado, a culpa de Édipo, o poeta nos compele, ao mesmo tempo, a reconhecer nossa própria alma secreta, onde esses mesmos impulsos, embora suprimidos, ainda podem ser encontrados. O contraste com que nos confronta o coro final - Fitai de Édipo o horror, Dele que o obscuro enigma desvendou, mais nobre e sapiente vencedor. Alto no céu sua ‘estrela se acendeu, ansiada e irradiante de esplendor: Ei-lo que em mar de angústia submergiu, calcado sob a vaga em seu furor. -tem o impacto de uma advertência a nós mesmos e a nosso orgulho, nós que, desde nossa infância, tornamo-nos tão sábios e tão poderosos ante nossos próprios olhos. Como Édipo, vivemos na ignorância desses desejos repugnantes à moral, que nos foram impostos pela Natureza; e após sua revelação, é bem possível que todos busquemos fechar os olhos às cenas de nossa infância. [nota 1, página 290]. Há uma indicação inconfundível no texto da própria tragédia de Sófocles, de que a lenda de Édipo brotou de algum material onírico primitivo que tinha como conteúdo a aflitiva perturbação da relação de uma criança com seus pais, em virtude dos primeiros sobressaltos da sexualidade. Num ponto em que Édipo, embora não tenha sido ainda esclarecido, começa a se sentir perturbado por sua recordação do oráculo, Jocasta o consola fazendo referência a um sonho que muitas pessoas têm, ainda que, na opinião dela, não tenha nenhuma sentido: Muito homem desde outrora em sonhos tem deitado Com aquela que o gerou. Menos se aborrece Quem com tais presságios sua alma não perturba. Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham ter relações sexuais com suas mães, e mencionam esse fato com indignação e assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o complemento do sonho de o pai do sonhador estar morto. A história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos. E, assim como esses sonhos, quando produzidos por adultos, são acompanhados por sentimentos de repulsa, também a lenda precisa incluir horror e autopunição. Sua modificação adicional se origina, mais uma vez, numa mal concebida elaboração secundária do material, que procurou explorá-la para fins teológicos. (Cf. o material onírico dos sonhos de exibição, em [1]) A tentativa de harmonizar a onipotência divina com a responsabilidade humana deve, naturalmente, falhar em relação a esse tema, tal como em relação a qualquer outro. Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e - tal como no caso de uma neurose - só ficamos cientes de sua existência através de suas conseqüências inibidoras. Estranhamente, o efeito esmagador produzido por essa tragédia mais moderna revelou-se compatível com o fato de as pessoas permanecerem em completa ignorância quanto ao caráter do herói. A peça se alicerça nas hesitações de Hamlet em cumprir a tarefa de vingança que lhe é atribuída; mas seu texto não oferece nenhuma razão ou motivo para essas hesitações, e uma imensa variedade de tentativas de interpretá-las falhou na obtenção de qualquer resultado. Segundo a visão que se originou em Goethe e é ainda hoje predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está “amarelecido, com palidez do pensamento”.) Segundo outra visão, o dramaturgo tentou retratar um caráter patologicamente indeciso, que poderia ser classificado de neurastênico. O enredo do drama nos mostra, contudo, que Hamlet está longe de ser representado como uma pessoa incapaz de adotar qualquer atitude. Vemo-lo fazer isso em duas ocasiões: primeiro, num súbito rompante de cólera, quando trespassa com a espada o curioso que escuta a conversa por trás da tapeçaria, e em segundo lugar, de maneira premeditada e até ardilosa, quando, com toda a insensibilidade de um príncipe da Renascença, envia os dois cortesãos à morte que fora planejada para ele mesmo. O que é, então, que o impede de cumprir a tarefa imposta pelo fantasma do pai? A resposta, mais uma vez, está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir. Aqui traduzi em termos conscientes o que se destinava a permanecer inconsciente na mente de Hamlet; e, se alguém se inclinar a chamá-lo de histérico, só poderei aceitar esse fato como algo que está implícito em minha interpretação. A aversão pela sexualidade expressa por Hamlet em sua conversa com Ofélia ajusta-se muito bem a isto: a mesma aversão que iria apossar-se da mente do poeta em escala cada vez maior durante os anos que se seguiram, e que alcançou sua expressão máxima em Timon de Atenas. Pois, naturalmente, só pode ser a própria mente do poeta que nos confronta em Hamlet. Observo num livro sobre Shakespeare, de Georg Brandes (1896), uma declaração de que Hamlet foi escrito logo após a morte do pai de Shakespeare (em 1601), isto é, sob o impacto imediato de sua perda e, como bem podemos presumir, enquanto seus sentimentos infantis sobre o pai tinham sido recentemente revividos. Sabe-se também que o próprio filho de Shakespeare, que morreu em tenra idade, trazia o nome de “Hamnet”, que é idêntico a “Hamlet”. Assim como Hamlet versa sobre a relação entre um filho e seus pais, Macbeth (escrito aproximadamente no mesmo período) aborda o tema da falta de filhos. Entretanto, assim como todos os sintomas neuróticos e, no que tange a esse aspecto, todos os sonhos são passíveis de ser “superinterpretados”, e na verdade precisam sê-lo, se pretendermos compreendê-los na íntegra, também todos os textos genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo único e mais de um único impulso na mente do poeta, e são passíveis de mais de uma interpretação. No que escrevi, tentei apenas interpretar a camada mais profunda dos impulsos anímicos do escritor criativo (Freud, 1996c, p. 282-293, grifos do original).

Nota de rodapé 1, página 283 [Nota de rodapé acrescentada em 1925]: Essa situação é frequentemente obscurecida pela emergência de um impulso autopunitivo que ameaça o sonhador, a título de reação moral, com a parda do genitor a quem ele ama.” (Freud, 1996c, p. 283).

Nota de rodapé 2, página 283 [Nota de rodapé acrescentada em 1909]: ou pelo menos é o que se afirma que ele fez, segundo alguns mitos. [Esse trecho é analisado no capítulo X (3) de Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (Freud, 1901b).] Quanto à importância mitológica desse tema, cf Rank, 1909. [Acrescentado em 1914] e Rank, 1912c, capítulo IX, seção 2. – [essas frases do texto são, é claro, um indício precoce da linha de pensamento a ser posteriormente desenvolvida por Freud em Totem e Tabu (1912-13).] (Freud, 1996c, p. 283).

Nota de rodapé 1, página 292 [Nota de rodapé acrescentada em 1919]: Essas indicações de uma explicação psicanalítica de Hamlet foram desde então ampliadas por Ernest Jones e defendidas contra outros pontos de vista propostos na literatura sobre o assunto. (ver Jones, 1910ª [e, numa forma mais completa 1949].) – [Acrescentada em 1930:] A propósito, nesse meio tempo, deixei de crer que o autor das obras de Shakespeare tinha sido o homem de Stratford. [Ver Freud, 1930e]. – [Acrescentado em 1919:] Outras tentativas de uma análise de Macbeth serão encontradas num trabalho meu [Freud, 1916a] e num de Jekels (1917). – [a primeira parte desta nota foi incluída de forma diferente na edição de 1911, mas omitida a partir de 1914:”Os pontos de vista sobre o problema de Hamlet contidos no trecho acima foram desde então confirmados e apoiados por novos argumentos num extenso estudo do Dr. Ernest Jones, de Toronto (1910ª). Ele também assinalou a relação entre o material de Hamlet e os mitos sobre o nascimento dos heróis, examinados por Rank (1909)” – Freud ainda examinou Hamlet num esboço publicado postumamente, que versa sobre “Personagens psicopáticos no palco” (1942ª), escrito provavelmente em 1905 ou 190.] (Freud, 1996c, p. 292).

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