As referências literárias na obra de Sigmund Freud

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
(Italo Calvino, Por que ler os clássicos)

Desde o seu nascedouro, a vocação da psicanálise é transdisciplinar, conforme atestam inequivocamente as diversas referências presentes na obra freudiana, sobretudo literárias. As considerações de Sigmund Freud (1926)[1] em defesa da laicidade da clínica psicanalítica recomendam o estudo da história da cultura, da mitologia, da psicologia da religião e da ciência da literatura (Literaturwissenschaft) ao psicanalista em formação, asseverando que a formação médica - ou ainda outra formação acadêmica especializada – é dispensável para a prática da psicanálise. Antes, neste ensaio o criador da psicanálise destaca a independência da psicanálise em relação a medicina, afirmando que a psicanálise não é uma especialidade médica e tampouco poderia ser considerada a título de psicologia médica. Também confessa o seu temor de que a psicanálise viesse a se tornar uma espécie de apêndice menor da psiquiatria, ou ainda uma mera terapêutica subsidiária da medicina, sustentando que a psicanálise é a ciência do inconsciente anímico ou psíquico (seelisch). Este breve intróito permite articular a perspectiva interdisciplinar avant la lettre da psicanálise com a literatura e a poesia na própria fundamentação teórico-conceitual do campo psicanalítico, cujo paradigma é a proposição do complexo de Édipo enquanto complexo nuclear das neuroses. Freud fundamenta a universalidade de seu achado clínico na tragédia Édipo rei, de Sófocles (430 a. C.), bem como através de sua auto-análise. Em uma carta[2] ao então amigo e também médico alemão Wilhelm Fliess, afirma que o complexo de Édipo é um evento universal da infância, assegurando ao relevante achado clínico o indispensável caráter de universalidade exigido à ciência.

Em outra carta[3] destinada a ao amigo, Freud afirma que Shakespeare tinha razão em justapor ficção e loucura (fine frenzy), uma vez que, de acordo com Freud, o mecanismo da ficção é idêntico ao das fantasias histéricas.

A primeira menção a uma obra literária é encontrada em uma carta a Wilhelm Fliess, na qual Freud menciona a obra Die Richterin (“A juíza”), a propósito do romance familiar engendrado pela neurose.

Nas obras completas de Sigmund Freud traduzidas no Brasil[4] foram identificadas 243 (duzentas e quarenta e três) referências literárias dentre os autores mais citados por Freud, destacando-se as referências ao poeta, romancista, dramaturgo, cientista e político alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832) , com oitenta e três citações, ao poeta e dramaturgo britânico William Shakespeare (1564 – 1616), com setenta e oito citações, ao romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821 – 1861), com trinta e sete citações, ao poeta trágico grego Sófocles (496 a.C. – 406 a.C.) com vinte e quatro citações e ao poeta e dramaturgo alemão Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759 - 1805) com vinte e uma citações.

O levantamento bibliográfico circunstanciado das principais referências literárias presentes na obra freudiana foi realizado ao longo dos últimos anos como parte de diferentes projetos de pesquisa propostos e coordenados por mim no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O projeto de pesquisa “Psicanálise e literatura: o campo da palavra e da linguagem como práxis” foi contemplado com o Auxílio ao Pesquisador Recém Contratado (ARC) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); já o projeto de pesquisa “Freud e a ciência da literatura – interdisciplinaridade na fundamentação teórico-conceitual da psicanálise” recebeu o inestimável auxílio do Programa Prociência, da Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PR2-UERJ). Somando-se a estes, o projeto de pesquisa “Psicanálise e literatura – Sigmund Freud e os clássicos” vem renovadamente sendo contemplado com bolsas de Iniciação Científica. Desde o ano de 2016 estas vêm sendo concedidas pelo Departamento de Capacitação e Apoio à Formação de Recursos Humanos da Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DCARH/PR2/UERJ), seja diretamente financiadas pelo Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), seja através da cota de bolsas de Iniciação Científica destinada à UERJ.

Agradeço às referidas instituições de fomento à pesquisa pelo imprescindível apoio, sem o qual o presente banco de dados das principais referências literárias na obra freudiana não teria sido exequível. Estendo o meu agradecimento aos diversos estudantes, tanto bolsistas e como voluntários, que, a título de integrantes dos projetos de pesquisa mencionados, contribuíram para a realização do levantamento bibliográfico que deu origem ao banco de dados das principais referências literárias na obra de Sigmund Freud.

Este banco de dados tem por principal objetivo oferecer um instrumento de pesquisa aos interessados na articulação profícua entre a psicanálise e a literatura, estabelecida por Sigmund Freud com vistas à fundamentação teórico-conceitual do campo psicanalítico. Esperamos que esteja à altura de seu legado.

Ingrid Vorsatz
Novembro de 2025


[1] A questão da análise leiga (Die Frage der Laienanalyse).
[2] Carta de 15 de outubro de 1897.
[3] Trata-se do Rascunho N, que integra a carta datada de 25 de maio de 1897.
[4] A fonte consultada é a Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud publicada pela Editora Imago, cuja tradução se encontra em domínio público.

Literatura, Psicanálise

10/11/2025 00:00