Referências ao autor - 9ª referência

Freud, Sigmund (1996c). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud vol. V. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1900).

A citação encontra-se em “A interpretação dos sonhos” (1900) no capítulo VI, intitulado “O trabalho do sonho, seção (G) - Sonhos absurdos - atividade intelectual nos sonhos”, subseção V, páginas 470-472. Trata-se de um sonho de Freud com Goethe, em que o renomado escritor ofende um jovem, reportado na íntegra abaixo:

Aqui temos mais um sonho absurdo que joga com números. Um de meus conhecidos, o Sr. M., fora atacado num ensaio com um injustificado grau de violência, ao que todos pensamos, por ninguém menos que Goethe. O Sr. M., naturalmente, ficou arrasado com o ataque. Queixou-se amargamente dele com algumas pessoas que o acompanhavam à mesa; sua veneração por Goethe, entretanto, não foi afetada por essa experiência pessoal. Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos, que me pareciam improváveis. Goethe morreu em 1832. Uma vez que seu ataque ao Sr. M. teria naturalmente sido feito antes disso, o Sr. M. devia ser um homem muito jovem na ocasião. Pareceu-me uma noção plausível que tivesse dezoito anos. Eu não tinha muita certeza, porém, do ano em que escrevíamos, de modo que todo o meu cálculo se desfazia na obscuridade. A propósito, o ataque estava contido no famoso ensaio de Goethe sobre a “Natureza”.

Logo encontraremos meios de justificar o absurdo desse sonho. O Sr. M., com que eu travara conhecimento em meio a algumas pessoas que me acompanhavam à mesa, pedira-me não muito antes que examinasse seu irmão, que estava apresentando sinais de paralisia geral. A suspeita era correta; na ocasião dessa visita, aconteceu um episódio embaraçoso, pois no decorrer da conversa, o paciente, sem nenhuma razão justificável, revelou coisas íntimas sobre seu irmão ao falar de suas loucuras juvenis. Eu havia perguntado ao paciente o ano de seu nascimento e o fizera efetuar várias pequenas somas, para testar a debilitação de sua memória - embora, aliás, ele ainda ficasse perfeitamente à altura dos testes. Logo pude ver que, no sonho, eu próprio me havia comportado como um paralítico. (Eu não tinha muita certeza do ano, porém, em que escrevíamos.) Outra parte do material do sonho derivava de outra fonte recente. O editor de uma revista médica, com quem eu mantinha relações amistosas, publicara uma crítica altamente desfavorável, “arrasadora”, do último livro de meu amigo berlinense Fl. [Fliess]. A crítica fora escrita por um profissional muito jovem, que tinha pouco discernimento. Achei que tinha o direito de intervir e repreendi o editor por isso. Ele expressou um vivo pesar por haver publicado a crítica, mas se recusou a fazer qualquer retificação. Assim, cortei relações com a revista, mas, em minha carta de desligamento, expressei a esperança de que nossas relações pessoais não fossem afetadas pelo acontecimento. A terceira fonte do sonho fora um relato que eu acabara de escutar de uma paciente a respeito da doença mental de seu irmão e de como ele havia entrado em delírio frenético, aos gritos de “Natureza! Natureza”. Os médicos acreditavam que sua exclamação proviesse do fato de ele ter lido o notável ensaio de Goethe sobre esse assunto, e que isso mostrava que ele se vinha extenuando em seus estudos de filosofia natural. Quanto a mim, preferi pensar no sentido sexual em que essa palavra é usada aqui, até mesmo pelas pessoas menos instruídas. Essa minha idéia ao menos não foi refutada pelo fato de o pobre rapaz, em seguida, ter mutilado seus próprios órgãos genitais. Ele tinha dezoito anos na ocasião de seu surto.

Posso acrescentar que o livro de meu amigo que fora tão severamente criticado (“fica-se pensando se o autor é que é louco, ou se nós mesmos o somos”, dissera outro crítico) versava sobre os dados cronológicos da vida, e mostrava que a duração da vida de Goethe era um múltiplo de um número [de dias] que tem importância na biologia. Logo, é fácil perceber que, no sonho, eu me estava colocando no lugar de meu amigo. (Tentei esclarecer um pouco os dados cronológicos.).

Mas comportei-me como um paralítico, e o sonho foi um amontoado de absurdos. Desse modo, os pensamentos oníricos diziam com ironia: “Naturalmente, ele [meu amigo F.] é que é o tolo, o maluco, e vocês [os críticos] é que são os gênios que sabem de tudo. É claro que, por acaso, não seria o inverso, não é mesmo?” Havia muitos exemplos dessa inversão no sonho. Por exemplo, Goethe atacava o rapaz, o que é absurdo, ao passo que ainda é fácil para um homem bastante jovem atacar Goethe, que é imortal. Além disso, fiz os cálculos a partir do ano da morte de Goethe, ao passo que fizera o paralítico calcular a partir do ano de seu nascimento., onde esse Mas eu também me havia comprometido a mostrar que nenhum sonho é induzido por outros motivos que não os egoístas. Logo, preciso explicar o fato de, no presente sonho, ter tornado minha a causa de meu amigo e ter-me colocado em seu lugar. A força de minha convicção crítica na vida de vigília não basta para explicar isso. A história do paciente de dezoito anos, contudo, e as diferentes interpretações de sua exclamação “Natureza!!” eram alusões à oposição em que eu mesmo me encontrava perante muitos médicos, por causa de minha crença na etiologia sexual das psiconeuroses. Podia dizer a mim mesmo: “O tipo de crítica que foi aplicado a seu amigo será aplicado a você - na verdade, em certa medida, já foi”. O “ele” do sonho, portanto, pode ser substituído por “nós”: “Sim, vocês têm toda razão, nós é que somos os tolos.” Havia no sonho um lembrete muito claro de que “mea res agitur”, na alusão ao ensaio breve mais primorosamente escrito de Goethe, pois quando, ao final de meu tempo de escola, eu hesitava na escolha de uma carreira, foi escutar esse ensaio lido em voz alta numa conferência pública que me fez optar pelo estudo das ciências naturais (Freud, 1996c, p. 470-472, grifos do original).

Goethe

09/11/2025 00:00